VERÃO

Reapareceu a mulher dos olhos semi-cerrados
e do corpo íntimo, caminhando pela rua.
Olhou de frente estendendo a mão,
na rua parada. Tudo voltou à tona.

Na quieta luz de um dia longínquo
desfez-se a recordação. A mulher levantou
a fronte simples, e o olhar daquele tempo
reavivou-se. A mão ficou tensa na mão
e o aperto ansioso era o mesmo de outrora.
Tudo retomou as cores e a vida
com o olhar recolhido, a boca entreaberta.

E voltou a angústia dos dias longínquos
quando todo um imóvel verão inesperado
de cores e tepidez aflorou nos relances
daquele olhar humilde. E voltou a angústia
que nenhuma doçura dos lábios abertos
pode amaciar. Um céu imóvel habita
friamente aqueles olhos.
No meio da calma a lembrança,
sob a luz submissa do tempo, era uma dócil
agonizante a quem a janela se enevoa e desaparece.
Desfez-se a recordação. O ansioso apertar
da mão suave reacendeu as cores
e o verão e o calor sob o céu luminoso.
Mas a boca entreaberta e os olhos submissos
só dão vida a um duro inumano silêncio.

Cesare Pavese, Itália (1908-1950), tradução de Nuno Dempster.

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Anche tu sei l’amore

Também tu és o amor.
És de sangue e de terra
como os outros. Caminhas
como quem não sai
da porta de casa.
Olhas como quem espera
e não vê. És terra
que sofre e cala.
Há sobressaltos e cansaços,
há palavras ― caminhas
na expectativa. O amor
é o teu sangue ― não mais.

Cesare Pavese, Itália (1908-1950), tradução de Nuno Dempster.

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Pensamentos de Dina

É um prazer lançarmo-nos à água que flui já límpida
e fresca de sol: a esta hora não há ninguém.
Faz arrepios, a casca dos choupos, ao roçá-la com o corpo,
mais do que a água fragorosa de um mergulho.
Debaixo de água ainda está escuro
e é um gelo de morrer, mas basta saltar ao sol
e volta-se a olhar as coisas com olhos lavados.

É um prazer relaxar-me nua entre a erva já cálida
e buscar com os olhos semicerrados as grandes colinas
que se elevam sobre os choupos e me vêem nua
e de lá ninguém se apercebe de mim. Aquele velho em cuecas
e de chapéu, que andava a pescar, viu-me mergulhar,
mas julgou que era um rapaz e nem sequer disse nada.

Esta noite regresso mulher no vestido vermelho
– os homens que me sorriem na rua
não sabem que estou agora deitada aqui nua – regresso vestida
a recolher sorrisos. Esses homens não sabem
que esta noite terei ancas mais fortes, no vestido vermelho,
e serei outra mulher. Ninguém me vê aqui em baixo:
e além dos arbustos os trabalhadores da areia são mais vigorosos
do que aqueles que me sorriem: nenhum me vê.
São patetas os homens – esta noite dançando com todos
estarei nua, como agora, e nenhum saberá
que podia ter-me encontrado aqui sozinha. Serei como eles.
Só que, os tolos, vão querer abraçar-me com força,
segredar-me propostas com manha. Mas que me importam
as suas carícias? Sei fazer carícias a mim mesma.
Hoje à noite devemos poder estar nus e ver-nos
sem sorrisos de astúcia. Eu sorrio sozinha
ao estender-me aqui entre a erva e ninguém o sabe.

Cesare Pavese, Itália (1908-1950), tradução de Nuno Dempster.

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